quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

MENU DO DIA: A ALEGRIA

A ancestralidade de um povo mestiço confunde até a mais complexa árvore genealógica. Suas raízes azuladas misturado a boas pitadas de suor dos navios negreiros sinalizam cores, histórias e sabores.
Adentrar a terra sagrada dessa também pajelança é dançar ao ritmo de Ijexa e seus Orixas.








Os tambores tocavam alto preenchendo aquele espaço de cinco lugares e ar condicionado, as risadas altas e cheias de verdades tomavam conta daquelas ruas de pedras antigas e cheias de histórias para contar e o cheiro da cultura popular pipocava a cada sacolejo do automóvel moderno.
O destino final havia chegado e meu coração em desalinho se acalmou em segundos quando ao pisar na rua fui recebida ao som do mantra da força, era o birimbau e sua roda de capoeira que abria alas para eu poder ali escrever a minha história.
O cheiro do dendê anestesiante perfumava minha passagem até o Largo do Pelourinho onde se encontrava uma dúzia de homens fortes e olhares marcantes. Nossos olhares se cruzaram e em um gesto involuntário estava eu a bater palmas e remexer as minhas ancas como faziam minhas tataravós após um dia cansativo na fazenda do sinhô. A energia estática tomou conta do momento e seus estalos embalaram minha doce e sutil imaginação. 
O dia era colorido, o sol amarelo ouro de Oxum irradiava esperança e o calor só não era mais quente que a pimenta do acaraje. O céu azul e sem nuvens nos fazia um convite irrecusável de degustar o menu do dia ... a alegria.






A desconexa conexão do Pelourinho é o que traz forma e valor a toda a sua história cultural. Não precisei mais de um minuto para descobrir as riquezas visíveis naquele luxuoso simplório local.
As ruelas ora cheirando antiguidade ora perfumada pelas colonias francesas dos turistas que perambulavam fazia com que aquele pedaço de espaço bahiano se tornasse ainda mais interessante.
Eram aproximadamente onze horas da manhã e minhas papilas degustativas começavam a se atiçar mas o fome do conhecimento chamava muito mais a minha atenção. Fomos em busca do menu que não é retratado nas mídias televisivas ou nos pasquins que se lê por ai, estávamos em busca da vida como ela é.
As diferentes cores de cada edifício se contrastava com os sons e dialetos próprios que muitas vezes me parecia difícil de entender. Um linguajar sedutor e cheio de malemolência me puxava de volta as aulas que eu tinha com Dona Elza, minha avó, quando me contava sobre o período da escravidão. As falas atravessadas seguida de altas risadas não me dava tempo de imaginar; a minha entrada acabara de ser servida. Ela era irreverente, peculiar e muito divertida ....ela era a cena não teatral dos brasileiros mais bem humorados que já conheci.









Ao caminhar ladeira abaixo em direção a famosa casa azul, mundialmente conhecida graças a Michel Jackson , me deparei com um senhor que empurrava uma carriola . Ele era magro, estatura média, alguns dentes da frente faltando e exalava uma não tão boa cachaça; ele era quase um  protótipo de muitos negros, que ali se perderam tentando se achar após serem libertos de uma escravidão que continuava a lhes aprisionar. Esse senhor olhou para mim e me deu um sorriso cansado mas cheio de energia positiva, a mesma energia que lhe sustentava a seguir em frente assim como os telhados feitos nas coxas que ainda continuavam a existir.
O relógio parecia não se conectar com o ritmo bahiano e nos apressava para que pulássemos a ordem do menu. Resolvemos criar o nosso próprio tempo deixando nossa experiência ainda mais encantadora.









O prato principal do dia seria o acaraje da Dadá, mas mal sabia eu que os temperos que o Pelô cultiva é que eram o verdadeiro "tchan" de tudo aquilo que fomos buscar. Nos deliciamos com os cominhos em pó representados pelas fazedoras de terere que com sua versatilidade nas mãos refrescavam os couros cabeludos daqueles dias "calientes". Vislumbramos o açafrão da terra através das negras e negros de olhos esverdeados e nariz afinalados provenientes da mistura holandesa negreira e nos acabamos na pimenta malagueta das brigas conjugais a céu aberto tendo como platéia todos os seres ali presentes.

Terminada a sessão de colheita daquelas excêntricas especiarias partimos em busca do combustível para o corpo . Era uma casa pequena, com algumas fotos penduradas e uma linda estátua de Ogum guerreiro sincretizado com São Jorge. A senhora que veio nos atender nos acomodou próximo a janela e de lá eu vislumbrava toda a força miscigenada depositada nos tijolos reais que ali sobreviviam. A chuva que começava a cair era a amiga perfeita naquele momento de calor bahiano. Ela lavou nossas almas e limpou nosso paladar para receber com amor , carinho e uma gigantesca dose de fome o nosso imenso acaraje! O seu formato, a sua suavidade, a sua força e o seu sabor era a representação de todo aquele menu que estávamos a degustar desde as primeiras horas da manhã.









Saciados pela alimentação diferenciada caminhamos Ed, Miguel e eu até a Baixa do sapateiro e lá fizemos uma parada para assim podermos retomar a nossa comilança cultural e fecharmos o dia com a sobremesa que era a "cara" do chef. Andamos por aquela avenida e nos deparamos com personalidades que somente nesses arredores eu conseguiria compreender. Cada rosto que desfilava, cada olhar que se cruzava, cada cheiro que exalava me trazia de volta memórias de uma ancestralidade que apenas escutei falar. De alguma forma ela me era familiar, de algum modo eu me sentia em casa, de algum jeito eu conseguia SER EU ali.








A digestão havia chegado ao fim e a insistente ladainha de "eu quero sorvete" me deixou na dúvida se eu teria escolha na degustação final. Subimos em direção a casa do saudoso Jorge Amado e ao fundo escutei o "chef " a me chamar. Olhei para o lado e tive a nítida certeza de que as escolhas não mais me pertenciam e aceitei com agrado aquela linda, surpreendente, emocionante e acolhedora sobremesa.

O menu final nos conquistou e fez com que em segundos derretesse o gelo saborizado do Miguel. Um portal se abriu e me vi fazendo parte daquela massa de sabor . O mais belo dos belos toques adicionado a muitos kilos de batida afrobrasileira coloria de branco o corpo negro dos tocadores da alma. O som que me arrepiava da cabeça aos pés agora era saboreado e só chegou ao fim quando empanturrados voltamos para a casa.








A porta branca se abriu e entramos novamente naquele automóvel moderno, ele ligou o ar condicionado e perguntou: "Pai, para onde você vai meu rei?". Minha mente automática respondeu o endereço decorado mas minha alma livre me pediu que ele nos levasse onde o menu do dia fosse a alegria!










Me siga no instagram: @sarah.divah

2 comentários:

  1. Me vi retornando àquelas ruas do pelourinho, baixa do sapateiro, casa de Jorge Amado... Tenho ótimas lembranças daquelas ruas e das pessoas quando por ali passei...

    ResponderExcluir
  2. Linda lembraça de um dia perfeito no arco do tempo. ❤️

    ResponderExcluir