sexta-feira, 25 de maio de 2018

SAINTES-MARIES-DE-LA-MER ... O CORAÇÃO GITANO

Os mistérios da vida estão a todo o momento a nos desafiar.
Uma história real ou fictícia pode nos revelar grandes descobertas de um passado que não passa onde a hipnose do bandolim gitano nos transporta para um mundo antigo pela crença mas atual pelo coração.






Saintes-Maries-de-la-Mer uma cidadezinha pequena situada no Sul da França há aproximadamente 40km de Arles. Um local que poderia passar despercebido pelos olhos de qualquer um se não tivesse em seu aroma o bucolismo associado a alegria do povo cigano.

Era o ápice da primavera na Europa e suas flores pareciam florescer dentro de mim. Aquele dia seria especial, era por ela que estávamos ali, era por uma história a qual eu fui a escolhida.
Levantei eufórica, apressando o passo para não perder um segundo daquela festa que ficaria para sempre registrada em meu coração. Engoli os brioches que havíamos comprado na noite anterior e esperei anciosa pela chegada do Ed com o carro e como quem quer colocar a carroça na frente dos bois, abri a porta e me sentei no banco da frente. Partimos, fomos ao encontro de Santa Sara Kali e seu bando.
A estrada que nos levou de Arles até o reencontro com meus antepassados era calma e perfumada. O cheiro de lavanda exalava forte a cada kilômetro rodado e meus olhos percorriam minuciosamente aquela estrada; em um ato hipnótico meu pensamento voou longe e aportou em minha meninice. O cheiro da lavanda dava passagem ao aroma dos bolinhos de chuva de minha avó. Era como se eu realmente estivesse revivendo aquele momento novamente. Nós duas sentadas na cozinha e conversando sobre religião. Lembro-me bem das palavras que saltaram de minha boca espontâneamente e aquele som se propagou de tal forma que fui chamada a realidade pela fala doce e infantil do Miguel. Eram os cavalos, eram os animais que faziam meu pequeno menino me trazer de volta ao sentimento que mais tarde me levaria a uma sútil regressão.
O céu se coloria de azul anil, algumas nuvens brancas brincavam de se pegar e o amarelo acolhedor começava a dar sinal do seu reinado. Abri a minha janela e senti uma leve brisa a tocar minha face, respirei fundo e aos poucos senti o cheiro do mar, o mesmo mar que trouxe as Marias ao um novo recomeço.
O nosso destino final havia chegado e o meu sonho de encontrá-la se tornara realidade. Rodamos quase que a cidade inteira para achar um lugar para estacionar, até que fomos guiados por uma música alegre que se tornou a nossa anfitriã naquele dia. O tempo estava ao nosso favor e pudemos andar lentamente por aquelas ruas cheias de histórias que a bíblia não contou. O nosso passo era modificado a cada troca de música que se apresentava pelas esquinas que passávamos e meu corpo, sem eu perceber, levitava por entre as notas musicais.






Era dia 24 de Maio de 2016, dia de Santa Sara Kali, dia de festa para o povo cigano, dia de reverenciar aquela escrava negra que tão bem cuidou de Maria Salomé, Maria Jacobina e Maria mãe de Jesus, quando as mesmas faziam a travessia de barco vindo do Egito .
A alegria e as risadas de todo povo que ali estava preenchiam todo o espaço físico, a música e as orações se fundiam em um só mantra e meu coração batia em compasso com toda aquela história de um povo que eu sabia que também era meu.
A primeira impressão que tive quando avistei pela primeira vez aquela igreja de pedra no meio da praça principal foi de reconhecimento, era como seu eu fosse o papel principal de uma novela e as câmeras estivessem me filmando em um ângulo de 360 graus e aos poucos aquelas imagens circulares que se faziam em volta de mim me levasse áquele passado que sempre esteve presente. Por um momento me vi ali reverenciando Kali e as Marias, dançando ao som do lamento cigano e brindando por mais uma boa colheita. O meu sonho acordada me empurrou para o momento real e me conduziu até a entrada principal da igreja. O meu passo foi ficando cada vez mais desconexo e apressado e a emoção de estar ali me pôs a chorar. Eram muitas pessoas a percorrer aquela simples igreja, eram muitos corpos aglomerados querendo prestar sua homenagem a ela, eram muitos pés a descer aquelas escadas quentes pela chama das velas, era eu e minha vontade de entrar naquela cripta para presenteá-la com um véu.









O murmúrio ao redor de Santa Sara era eminente e por vezes era quebrado pelos suspiros de algum devoto mais fervoroso. Minhas mãos estavam suadas e minha respiração ofegante. Pedi um momento para o Ed e fui ao encontro daquela Santa que sempre esteve presente em meus sonhos infantis. A fila era gigantesca e esperei aquele momento com um sorriso maior que o gigante Golias. Era a minha hora, não podia perder tempo, mas a senhora que estava ali a pageá-la se comoveu com minha emoção e me deixou ficar além do permitido.
O toque suave de meus dedos em sua imagem me retirou de cena dando passagem aquela sútil regressão, olhei para meu pequeno que estava em meu colo e consegui abraçá-los como se nós três fossemos uno. Delicadamente coloquei ao redor de seu manto os véus que a ela foram presenteados e me curvei em sinal de respeito e agradecimento. Aqueles poucos segundos ou talvez minutos ritualísticos foram o bastante para que a minha vida se transformasse. Voltei ao encontro do Ed e nos abraçamos fortemente, ele segurou minhas mãos, deu um sorriso cúmplice e me conduziu de volta a igreja. Nossos olhares se cruzaram e não falamos mais nada, apenas nos sentamos de frente ao altar e permanecemos em silêncio, em profunda meditação e gratidão por mais aquela dádiva.









O silêncio fora quebrado pela fala cigana, proveniente dos quatro cantos do mundo,que anunciava a hora da missa. Padres franceses, homens do clã cigano, turistas e curiosos se aglomeravam na igreja e o nosso banco ficou pequeno demais para nós três. Voltamos para a praça em frente a igreja e nos colocamos a postos como soldados próximo a uma comunidade cigana que ali estava. O poder do amor nos permitiu entender a missa em francês e até ousamos participar respondendo há algumas frases da pregação. A emoção era latente, minhas lágrimas se transformaram em cahoeira e meu coração era puro amor.







O cortejo que sairia da cripta em direção ao mar estava prestes a partir e minha condição com um filho de menos de 3 anos não era das melhores. As pessoas se amontoavam para conseguir um espaço que naquele dia era sagrado e meu corpo já dava sinais de cansaço. Sugeri seguir um grupo cigano, que em minha cabeça conhecia melhor aquele ambiente do que eu, e acertei em cheio. Sem saberem nos guiaram por entre ruas que jamais meus olhos irão esquecer. As ruelas tinham cheiro de frutas e frutos do mar, tinham cheiro de terra molhada e chai, tinham autenticidade e leveza, tinham poder e gargalhadas, tinham o moderno honrando a ancestralidade.







O mar estava a nossa espera e com ele o povo cigano e os guardiões de Kali.O cortejo estava próximo de nós e o Ed havia partido, ele decidira registrar aquele momento de dentro do mar, o mesmo mar que um dia Kali navegou. Ficamos eu e Miguel a espera da cavalaria que traria a imagem de Santa Sara. O barulho dos cavalos em conjunto com as línguas e dialetos presentes me paralisou e entrei em transe, eu havia perdido sua passagem diante de mim mas senti seus braços a me envolver e abençoar. Um barulho ensurdecedor reverberou e lá estava eu a dizer "Viva Santa Sara" com sotaque francês. A multidão foi se encaminhando até a beira do mar e eu continuava em meu posto de soldado de chumbo na entrada da praia, em cima de uma faixa de areia e rodeada por carroças ciganas











O trajeto representativo chegara ao seu fim e com ele a minha missão. O Ed havia retornado, molhado pela água benta do mar e cheio de amor para ser doado ao mundo. Caminhamos em direção a uma outra parte da praia e entrelaçamos nossas mãos. Uma história acabara de ser contada e nós fazíamos parte dela. Relaxamos, sentimos a brisa dos ventos que traziam a boa nova e gargalhamos alto.







Em nosso caminho de volta até o carro fui fisgada pelo olhar de uma cigana anciã , ela me corou como uma delas através de seu sorriso dourado. Meu corpo estremeceu, minha face se branqueou e meu coração pela primeira vez me respondeu as perguntas que vovó não soube responder.



Me siga no instagram: @sarah.divah




5 comentários:

  1. Delícia de ler. Salve Santa Sara ��

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  2. Lindo, lindo, lindo.O que mais posso dizer? Que senti o que vc sentiu? Que me vi no mesmo lugar? Não existem palavras que descrevam o colorido dos sentimentos que foi transmitido... Lindo, lindo, lindo!!!!!!!

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  3. Nossa!!!! Maravilhoso.... Parabens pelo trabalho!!!!continue nos presenteando com tao belos textos

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  4. Que lindo e emocionante, viajei e senti a energia desse seu caminhar ao encontro Da Santa Sara! Parabéns!

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  5. Sarah, a cigana que habita em mim reverencia a cigana que habita em você... Ao longo da leitura caminhei, dancei e recebi as boas energias de Santa Sara ! Fico feliz pela oportunidade que você teve ! Namastê por compartilhar...

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